quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Corpo Ressoante: Estética e Poder no Teatro Contemporâneo

Resumo: O presente artigo se propõe a iniciar uma crítica às abordagens da personagem, baseadas na introspecção, iluminar suas implicações políticas e estéticas e apresentar, como forma de superação das mesmas, a noção do ‘corpo ressoante’. Alinhado com as micro-políticas do desejo, o corpo ressoante se apresenta como alternativa de superação às abordagens da atuação baseadas na introspecção. A implicação pessoa/ ator-atriz/ personagens coloca uma série de questões que servem de ponto de partida para examinar o crescimento de abordagens introspectivas na atuação no contexto de governos totalitários; a dominância da emoção individual sobre a comoção coletiva, a opacidade que assumem o autor e a técnica e a progressiva desconsideração do público no teatro a partir da segunda metade do século XX.

Como qualificar o processo do corpo humano em performance? Quais os domínios e as fronteiras entre a pessoa, o ator ou a atriz e a personagem em cena? Quais as atribuições de cada um deles? Como é que a pessoa se reconhece a si mesma como tal? Quanto há dela ou dele na personagem que apresenta?

A reflexão conceitual sobre os procedimentos de atuação se manifesta escassa quando confrontada com questões cruciais como estas, porém, pouco freqüentes nas discussões sobre o tema. Mas se é verdade que, de alguma forma, perguntas como estas podem ser hoje produtivas, a partir de quando foi que, mesmo implicitamente, elas adquiriram vigência? Quando foi que o corpo em performance adquiriu a atual densidade na relação pessoa, ator/atriz e personagem?
Algumas linhas de argumentação desenvolvidas a partir destas últimas perguntas podem iluminar circunstâncias chave para a compreensão do papel dos atores, dos autores e do público no teatro contemporâneo.

Introspecção e totalitarismos.
Os questionamentos a respeito dos alcances e limites da relação ‘pessoa/ator-atriz/personagem’ assumem o atual perfil e intensidade no contexto do teatro moderno ocidental. Não resulta provável supor que questões do gênero circulassem no imaginário de atores românticos ou elisabetanos, por exemplo. Assim, é possível vincular a origem dos mesmos às inovações propostas nas primeiras décadas do século XX por Constantin Stanislavski que, desde então, permanecem no cerne da formação e da produção teatrais internacionais. Consequentemente, eles surgem de uma abordagem introspectiva da atuação que, de um modo aparentemente paradoxal, promove fortes implicações políticas, incidindo também de forma peculiar sobre o a palavra em performance na cena contemporânea. A história recente do teatro em Buenos Aires oferece bons exemplos neste caso.

Se na década de 1980 o retorno à democracia resultou no boom do teatro de grupos, a introspecção nos processos de formação e criação de atores e atrizes se intensificou consideravelmente durante os governos ditatoriais, quando a produção dramaturgica também se viu abalada (DAVINI, 2008: 149-153; 211-216). É nesses períodos que cresce a idéia de um ‘dentro’ que aparece como alternativa de fuga a um ‘fora’ atravessado pelo horror. Bloqueadas as possibilidades de exposição, adere-se a uma tradição psicologista e ‘interiorizante’. A sincronia da atitude introspectiva na atuação com os governos totalitários pode verificar-se inclusive no caso do mesmo Stanislavski, que desenvolveu seu trabalho sob a vigilância do poder stalinista. Assim, é possível vincular a ênfase na introspecção, que outorga uma densidade nova à relação pessoa/ator-atriz/personagem, com estratégias de sobrevivência sob a tutela de sistemas totalitários, iluminando uma de suas implicações políticas.

Emoção / comoção.
Fundada na procura da emoção de quem atua, as abordagens baseadas na introspecção acentuam também o papel da emoção individual de cada ator em cena. Se a palavra ‘emoção’ indica uma posição interior, uma intensidade que procura manifestar-se em um movimento de dentro para fora’, a palavra ‘comoção’, indica um movimento em solução de contigüidade, complementar, ‘em companhia de’, grupal. A separação dentro/fora e o movimento individual e unívoco ‘de dentro para fora’ que invoca a ‘emoção’ ficam mais explícitos ainda quando confrontados com os múltiplos movimentos solidários que a comoção invoca. A constante procura em prol da emoção tem produzido frequentemente atores que, trabalhando sobre sua memória emotiva são capazes, por exemplo, de chorar proficuamente sem necessariamente produzir a menor comoção na platéia.

A progressiva valorização da emoção de cada ator e atriz na formação e na performance teatral tem sido inversamente proporcional à desvalorização da comoção como objetivo da cena, que foi caindo ‘fora da moda’ ao longo do século passado. O exemplo do teatro de Bertold Brecht reforça esta linha de argumento quando, em sua tentativa de produzir algum efeito concreto sobre o público através de um jogo de identificações e distanciamentos, se afasta explicitamente da proposta stanislavskiana, evitando toda introspecção e colocando-se como alternativa ao modelo realista.

Já na segunda metade do século XX, e apesar da constante procura por desafetar a atuação de psicologismo, a ênfase na individualidade do ator colocada por Stanislavski mantém sua vigência nas tendências de Teatro Laboratório que, diversas em aparência, compartilham da mesma linhagem conceitual. O trabalho sobre a individualidade dos atores se acentua então até chegar, em alguns casos, ao ponto de prescindir concretamente do público, como foi o caso do último período de produção de Jerzy Grotowski, definido pela noção da arte como veiculo. Desvenda-se aqui outra das implicações políticas do acento na introspecção na atuação originada no realismo no teatro que, despida agora de psicologismo, mantém seu caráter introspectivo que resulta em uma certa desconsideração com relação ao público no teatro, mesmo quando derrubada a ‘quarta parede’.

A diminuição no fluxo de público em muitos circuitos teatrais, registrada em diversos médios especializados ou, em outra ordem de coisas, o revival do clown, cuja existência em cena se dá em relação direta com o público, podem ser entendidas como respostas a essa espécie de desconsideração com relação ao publico antes mencionada. A responsabilidade por esses fenômenos, frequentemente atribuídos à incidência da TV e do cinema, retorna ao seu genuíno lugar: as praticas teatrais. Em fim, a excessiva ênfase em uma emoção de caráter individual, produz um teatro bastante funcional ao capitalismo. Provavelmente ali resida a grande incidência dos caminhos introspectivos na atuação no cinema.

Emoção ou técnica?

O estúdio de Ricardo Bartís, figura chave no teatro em Buenos Aires, é procurado principalmente por atores profissionais, com muita formação e experiência, que buscam superar suas modalidade de atuação por não encontrarem mais atrativo, possibilidades de crescimento ou risco nelas. Ele vincula a origem dessas dificuldades a uma preocupação exacerbada por “sentir” que não mais contribui para atingir modos eficazes de “estar” em cena. Produzir ‘estados de atuação’ eficazes e poder retornar a eles não requer ‘emoção’ mas de inteligência, capacidade de decisão e domínio técnico. Os procedimentos introspectivos, continua Bartís, “impõem comportamentos monásticos, que afastam as possibilidades de ativar os efeitos múltiplos e devastadores do gozo e do prazer, e não desenvolvem a capacidade de organizar e acumular informação que permita aos atores a repetição.”[i]

Se bem em suas origens os procedimentos introspectivos configuraram estratégias eficazes no sentido de superar estilos extremadamente representativos, ingênuos ou caricaturais de atuação, a prolongada reincidência neles nutre hoje uma intensa confusão entre a pessoa, o ator ou a atriz, e a personagem, cujas marcas se deixam sentir na performance do texto. Procedimentos de improvisação ou paráfrase, que apontam à apropriação do texto por parte do ator, têm contribuído também para outorgar uma progressiva opacidade ao autor no teatro contemporâneo.

A personagem como entidade fixa, surgida duma biografia unívoca, trabalhada a partir de todo o que nunca será concretamente apresentado em cena, a literalização/desvocalização do texto teatral, resultam também da idéia da personagem como um ‘sentir’ que, sem ancoras técnicas, se confunde na pessoa. Liberado da idéia de uma identidade taxonômica, o “corpo ressoante”, o mais humano dos corpos, não naufraga nas profundezas do sentido enquanto conteúdo; ele é capaz da fluidez necessária para surfar na superfície do texto, dessa geografia que ‘dá’ forma, e nela, sedimenta múltiplos sentidos.

Ressoar é abrir e multiplicar sentidos e requer, portanto, de um imaginário em constante expansão nutrido por uma prática conceitual sintonizada com as temperaturas micro-políticas do desejo. Conduzir-se em ressonância requer de técnica. Capaz de atualizar o furor vital que nos coloca em estado de devir-outro, o ‘corpo ressoante’ supera a auto reflexão ensimesmada ‘pessoa, ator/atriz e personagem’, se afasta da introspecção solitária, para multi(im)plicar-se, para co-mover, um dos pressupostos da existência do teatro. O corpo ressoante também é uma questão de poder.


Bibliografia:
BLANC, Natalia. Diálogo Silvia Davni Existe una tendencia a despreciar al espectador. Jornal
La Nación, Suplemento ADN Cultura, pp 28-29, Buenos Aires, Sábado 22 de março
DAVINI, Silvia A. Cartografías de la Voz en el Teatro Contemporáneo. El caso de Buenos
Aires a fines del siglo XX. Colección Textos y Lecturas en Ciencias Sociales, Buenos
Aires, EdUNQ, 2007. ISBN 978-987-558-127-2
_______ O Beijo de Romeu e Julieta. Tempo e Performance. Org. Medeiros, Maria Beatriz
de, Monteiro, Marianna F. M., Matsumoto, Roberta K. Editora da Pós-graduação em
Arte da Universidade de Brasília. Brasília, Janeiro de 2007. ISBN 978-85-89698-12-2.
_______ Vocalidade e Cena: tecnologias de treinamento e controle de ensaio. Folhetim –
Teatro do Pequeno Gesto No 15, pp. 59-73. Rio de Janeiro, Rioarte, 2002.
[i] As referências a Ricardo Bartís neste artigo surgem da entrevista que me concedeu o 04 de maio de 1999 em Buenos Aires. A publicação de uma versão integral da mesma, junto a uma seleção das 47 entrevistas realizadas como parte da minha pesquisa de doutorado, encontra-se em período de edição.

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