quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Do Corpo como Instrumento ao Corpo como Lugar

Sulian Vieira Pacheco

Palavras-chave: noções de corpo, formação de atores, teatro contemporâneo.

Somente nas últimas décadas do século XX o corpo humano se tornou objeto de discussão nas Ciências Humanas, nos Estudos Culturais e na Filosofia. No que diz respeito às noções de corpo que circulam hoje no campo dos estudos teatrais, observa-se que a confluência sujeito-corpo no trabalho dos atores contribua para a opacidade na definição dos limites e extensões do que chamamos de corpo humano.

Neste artigo objetiva-se considerar mais pontualmente as noções de corpo como instrumento, como primeiro palco da cena e como lugar. [i] A princípio serão explicitadas as noções de corpo presentes em publicações de Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski, Peter Brook que tendem a considerar o corpo como instrumento do ator ou como organismo.

Desde o início do século XX, as publicações de Stanislavski têm sido referências para um grande número de propostas de formação de atores no Ocidente. Em seu discurso o corpo é constantemente tratado como ‘aparelho ou aparato físico usado pelo ator’, situando o corpo em uma categoria instrumental.

Observa-se nesta definição certa fragmentação entre o sujeito e seu corpo, que é extensamente ilustrada no discurso de Stanislavski por diversos binômios, como corpo/alma, corpo/mente, pensamento/sentimento, sentimento/expressão, circunstâncias externas/circunstâncias internas (Stanislavski, 1989: 59-70). Respondendo à mesma lógica fragmentária, a noção de ação física, introduzida pelo autor e intensamente vigente no teatro contemporâneo, que se associa mais ao deslocamento espacial por meio do movimento do que à voz e à palavra em cena, gerando outros binômios como corpo/voz e movimento/voz (Stanislavski, 1997: 1-5).

Jerzy Grotowski formulou o Teatro Pobre na busca por uma estética liberada dos aparatos tecnológicos e de tudo o que pudesse afastar o teatro de sua origem ancestral. Seu foco então recaiu sobre a relação entre o corpo do ator e a platéia, considerada por ele como essencialmente teatral (Grotowski apud Pavis, 1996: 75).

Peter Brook, diretor que propôs a noção do ‘teatro como um espaço vazio’, considera que Grotowski tenha obtido um resultado positivo na busca de um ‘teatro puro’, centrado no corpo dos atores que atribui valores aos objetos em cena significando tudo ao redor. Para Brook, o corpo dos atores no Teatro Pobre é o que sobra se subtraímos tudo o que é considerado supérfluo. O corpo é o ‘instrumento humano’, marcando distanciamento em relação ao tecnológico, ou seja, o que é considerado não-humano (Brook, 1990: 67).

Para Brook, é a maestria técnica, adquirida através do trabalho perseverante, que permite que o corpo deixe de ser um obstáculo na cena para ser um receptáculo. Ele alude assim à idéia do ‘ator santo’ formulada por Grotowski, na qual o corpo do ator é considerado como um receptáculo para o personagem, da mesma forma em que, nas perspectivas platônica, idealista ou cristã, o corpo o é para a alma. O personagem é considerado como uma existência anterior e ativa, que age sobre o corpo do ator, cuja preparação consiste em permitir a ação do personagem. Busca-se assim um corpo puro e passivo, como uma tábua rasa a ser inscrita ou mesmo o corpo como um espaço vazio, na perspectiva de Brook (BROOK, 1990: 66).

Ao propor a ‘via negativa’ no teatro, Grotowski objetiva que reconhecendo hábitos adquiridos e automatizados os atores possam desconstruí-los. De acordo com suas propostas, se estes hábitos não são percebidos, se instalam entre quem atua e seu corpo. Brook alia-se à proposta de Grotowski quando diz que o trabalho do ator ‘não deve objetivar o como fazer, mas o como permitir’ (BROOK apud BERRY, 1973: 01). Assim, os hábitos adquiridos socialmente são compreendidos como obstáculos que distanciam os atores de seus supostos corpos naturais.

Apesar das considerações de Antonin Artaud sobre o corpo terem se convertido em referência para o teatro experimental do século XX, o conceito de ‘Corpo sem Órgãos’ proposto por ele foi amplamente desenvolvido pelo discurso filosófico de Deleuze e Guattari. Para os autores Artaud não conseguiu progressos em sua proposta por não encontrar pontos de fuga no sistema de pensamento racionalista, do qual ele não se desvencilhou, e cujas estratégias de linguagem não são compatíveis com o desenvolvimento de um conceito como o de CsO. Deleuze e Guattari não compreendem o CsO como uma oposição aos órgãos, mas como uma oposição àquele modo de organização dos órgãos que se chama organismo, tomando o CsO como uma noção que refere-se para além do corpo humano exclusivamente.

Já a noção de corpo como ‘plano de consistência’ se realiza nos agenciamentos entre um CsO e outros. As noções de CsO e de plano de consistência são noções produtivas para abordar a complexidade da atuação e, sobretudo, da produção de voz e palavra em performance, uma vez que as categorias dualistas ou organicistas não comportam a simultaneidade e a densidade de toda esta demanda (Deleuze e Guattari, 1996: 14-5).

Considerando o crescente aumento das interações entre o corpo e a máquina, desde a segunda metade do século XX, Silvia Davini considera o lugar que a tecnologia tem ocupado em relação ao corpo humano. Observando as mudanças nos modos de produção e percepção de público e atores, ela propõe que, nesse marco, o corpo humano seja redefinido em relação ao não-humano (Davini, 2002: 60-1). Assim, Davini tem se aproximado de noções de corpo, tais como a de corpo como plano de consistência, no desejo de superar os limites das definições orgânicas (biológico-fisiológicas) ou instrumentais do corpo humano, como também tem formulado noções alternativas, tais como a do corpo como o ‘primeiro palco da cena’, a partir do qual o tempo e a cena atualizam-se (Davini, 1998: 38).

Ainda com o objetivo de abordar o corpo em performance em toda sua complexidade, define o corpo humano como um ‘lugar de produção de sentido’. A noção de corpo como ‘lugar’ inspira-se nas formulações de Marc Augè sobre os ‘lugares e os não-lugares’, a partir da hipótese de que a super-modernidade seja produtora de não-lugares: “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar” (AUGÈ, 1994: 73-4).

Augè cita Michel de Certeau ao afirmar que o espaço passa a ser um lugar na medida em que algo acontece nele e o define: “[...] incluímos na noção de lugar antropológico a possibilidade dos percursos que nele se efetuam, dos discursos que nele se pronunciam e da linguagem que o caracteriza” (AUGÈ, 1994: 76-7).

A noção de corpo como lugar nos aproxima assim das contingências históricas em que se dão os corpos dos atores, de modo geral, parecem ser pouco consideradas nas abordagens do corpo nos estudos teatrais. Assim, Davini reconhece o corpo também como um ‘lugar de intersecção entre as dimensões visual e acústica da cena’, uma vez que considera a voz e o movimento como produções corporais capazes de gerar sentidos, controláveis na cena (Davini, 2006: 309).

O corpo de quem atua agencia diversas dimensões simultâneas como o sujeito desejante, o grupo social a que pertence, o personagem como devir cinético e vocal, entre outras. A consistente explicitação e discussão de noções tais como corpo, voz, movimento, ação, personagem, entre outras, se faz importante uma vez que em cada contingência histórica são definidos procedimentos de formação de atores a partir dessas noções, bem como processos de ensaios e seus respectivos resultados estéticos e suas implicações políticas.

[i] A reflexão sobre estas noções corresponde a demandas surgidas a partir do projeto de Pesquisa de Doutorado de Sulian Vieira O Treinamento de Atores: a procura de um lugar de autonomia entre a técnica e a estética no teatro contemporâneo orientado pela Doutora Silvia Davini no Programa de Pós-Graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

Bibliografia:
AugÈ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da super-modernidade. Campinas: Editora Papirus, 1994.
Berry, Cicely. Voice and the Actor. New York: Wiley Publishing, 1973.
Brook, Peter. The Empty Space. London: Penguin Books, 1990.
Davini, Silvia. O Jogo da Palavra, Humanidades-Teatro. No 44 -, pp. 37-44. Brasília: Ed. UnB, 1998.
_____________. Vocalidade e Cena: Tecnologias de Treinamento e Controle de Ensaio. Folhetim –Teatro do Pequeno Gesto No 44, Rio de Janeiro: Rioarte, 2002.
_____________. O lado épico da cena ou a ética da palavra. Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. Anais/IV Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. pp 308-9. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
Deleuze, Gilles e Félix Guattari. Mil Platôs - Capitalismo & Esquizofrenia. Volume 3 São Paulo: Editora 34, 1988.
Pavis, Patrice. Dicionário do Teatro: Dramaturgia, Estética, Semiologia. São Paulo: Perspectiva, 1996.
Stanislavski, Constantin. A Construção da Personagem. São Paulo: Civilização Brasileira, 1989.
_________________________. Manual do Ator. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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