quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Lado Épico da Cena ou a Ética da Palavra

Este artigo pretende apresentar, de forma sintética, o trabalho com o texto em performance desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Vocalidade e Cena. Assim sendo, as referencias bibliográficas pretendem dar indícios do marco conceitual que sustenta este trabalho, que não pode ser desenvolvido no presente formato.

O texto cênico é geralmente considerado como uma realidade homogênea. Porém, a materialidade dessas ‘texturas verbais’ caracteriza-se pela sua variabilidade e heterogeneidade. De fato, um texto shakespeareano coloca desafios aos atores muito diferentes daqueles contidos numa peça de Ibsen, por exemplo. Contudo, esse terreno instável que é o texto em performance é atravessado, em todos os casos, por um número de dimensões que chamamos ‘modos’, não no sentido dado ao termo no campo da lingüística, mas como modos musicais. Mais ou menos explícitos, em toda textura verbal convivem diversos modos de enunciação, diversas materialidades a serem modeladas em performance, que surgem da combinação de camadas de modos textuais. Essa materialidade do texto se realiza em cena na materialidade da voz.
No campo dos estudos teatrais, profundamente influenciado pela crítica literária, tende-se a definir a voz como ‘transito’ entre corpo e sistemas de códigos lingüísticos; e/ou entre o corpo que profere e o que recebe esse proferimento.[1] Abordada como tránsito entre dois pólos conceitualmente bem definidos, a voz constitui-se em um não-lugar.[2] No desejo de outorgar-lhe entidade de objeto, definimos a voz como uma produção do corpo capaz de gerar significados complexos, controláveis em cena. Assim, a voz alinha-se conceitualmente ao que, de uma forma geral, entendemos como movimento, constituindo-se ambos em categorias análogas. Porém, sendo sustento da palavra, à qual excede, a voz comporta maior definição do que o movimento na hora de produzir significado em performance.

Numa superfície de 360° constituída em diversos planos fixos e móveis, as esferas da voz e a palavra, do desenho acústico e da música em performance estabelecem um complexo de relações que reconhecemos como a dimensão acústica da cena. Nesse contexto, o corpo em performance torna-se o ‘palco’ primeiro; lugar de intersecção entre as dimensões visual e acústica da cena. Entendemos assim a voz como um entre[3]/lugar que abriga a palavra, situado no cerne da dimensão acústica da cena. Na dominância de um modo sobre outros se constituem os gêneros em performance. Nas frestas que se abrem entre modos de enunciação e gêneros; entre as diversas presenças em performance e as audiências; entre as formas do si mesmo e do outro surge o estilo pessoal de cada ator e atriz.

Assim, o modo narrativo é dominante, por exemplo, nos contos, nas epopéias; o discursivo nos textos argumentativos; o poético, nas diversas formas que assume a poesia e em todo texto que atinja a intensidade sintética que lhe é característica; o modo cênico configura-se na tragédia, na comédia, no drama, na ópera; o instrutivo/ normativo, nas poéticas, nas retóricas, nas gramáticas, nas bulas, nas receitas, nos diversos corpus jurídicos; e o informativo nos gêneros jornalísticos, nos relatórios, entre outros. Porém, qualquer texto composto para ser performado, como é o caso do texto teatral, abriga, implícita ou explicitamente, de forma constante ou esporádica, ou até em potencia, esses seis modos de enunciação.

Percebendo o texto a partir de seus modos distanciamo-nos da idéia do texto como letra, para abordá-lo como evento acústico. Inspirados em procedimentos originados no campo da música modal e tonal, chamamos de modulação ao processo através do qual mudamos a dominância de um modo de enunciação sobre outro. A modulação do texto não é uma adaptação, mas um mecanismo através do qual, a partir de um texto dado, explicitamos e valorizamos um modo, antes implícito ou em potencial. Este procedimento inicia-se em uma intensa aproximação ao texto do qual se parte, seja este de autor ou originado na tradição oral, para fixá-lo, em última instância, em uma nova organização.

Assim, um material predominantemente narrativo pode transformar-se, por exemplo, em texto cênico sem abandonar as características do texto original. Neste contexto, o critério semântico, dominante na hora de escolher as palavras que definirão a geografia peculiar de cada texto, abandona suas características estritamente etimológicas para ser intensamente afetado pelo seu caráter fônico, ou seja acústico. Na modulação, permanecemos aderidos à superfície sonora das palavras, e definimos as escolhemos pelo grau de resistência ou fluidez que apresentem em performance. Nosso problema não reside na higiene vocal, nem em garantir o que se entende por inteligibilidade do texto em performance (ou seja, articulação definida e projeção da voz). Nosso problema é a criação de sentido em cena a partir do processo que vai da abordagem do texto até sua concretização na palavra.

Os modos verbais contribuem também para a definição da personagem como lugar de fala, noção esta que considera sua existência enquanto devir, partindo da produção de voz e palavra em cena, e sem contrariar o caráter fluido mesma. A personagem como lugar de fala configura-se a partir de ‘como se diz o que se diz’. Dos modos dominantes nas texturas verbais, da materialidade vocal de quem atua e dos seus estilos de atuação surge a alquimia de tempo e espaço que dá lugar à personagem em cena. O modo narrativo em performance descortina o lado épico da personagem, e traz como ele à cena uma peculiar experiência de tempo e espaço.
A epopéia de Sherazade flui através das noites quando, desde o mais íntimo do espaço privado da câmara real, ela viaja em cada história até um público infinito, costurando, noite a noite, palavra a palavra, a ferida aberta na sua comunidade. Um único relato pode, sem nos tirar do lugar, nos levar do micro universo de uma pedra, até o espaço sideral cheio de estrelas. A mobilidade que o tempo/espaço narrativo em performance propicia é somente comparável a alguns casos do cinema. Repetição e variedade constituem-se em coordenadas na hora de mapear as diversas qualidades de memória que motivam a narração.

O modo narrativo em cena desenvolve a personagem numa temporalidade e espacialidade estendida. As mudanças de foco imprimem uma mobilidade no texto que requerem de uma definição da personagem pautada na flexibilidade. A diversidade de posições ou distancias que a personagem épica pode assumir com relação á cena lhe outorgam um caráter múltiplo. A personagem épica não ‘reage’ a uma situação dada, ela ‘age’ com autonomia, mudando o estado de coisas. A recorrência do narrativo, das canções, da poesia na obra de Bertold Brecht podem ser entendidas como evidencia das potencialidades do lado épico da personagem.
O potencial ético e político da narrativa já se perfilava claro para Walter Benjamim na década de 1930; o premonitório de sua percepção pode ser apreciado hoje:
Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

Uma das causas deste fenômeno é obvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. [...] da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. No final da [I] guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha e não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano (Benjamin, 1986, 197-8).

Contar e ouvir contar requer de ambos, ouvinte e narrador, uma permanência, sem pressa, que renova um espaço de troca de experiências, vasto o suficiente para abrigar a dimensão estética do ato ético, estreitando vínculos, abrigando, propiciando o conselho. Nesse lugar único entre quem conta e quem escuta, a palavra assume sua dimensão ética e estética. A relevância deste lugar na formação de artistas e cidadãos surge assim de forma irrefutável.



Bibliografia:
AUGÉ, Marc. Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da superrmodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 1994.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e Historia da Cultura. Pp. 197-221. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
DAVINI, Silvia. Voice Cartographies in Contemporary Theatrical Performance: an Economy of Actor’s Vocality on Buenos Aires’ Stages in the 1990s. (Doutorado em Teatro), Queen Mary College, Universidade de Londres, 2000.
DELEUZE, Gilles e Félix GUATTARI. A Thousand Plateaus - Capitalism & Schizophrenia. London: The Athlone Press Ltd., 1988.
PAVIS, Patrice. Diccionário del Teatro: Dramaturgia, Estética, Semiología. Barcelona: Paidós, 1980.
[1] Ver ‘Voz’ em Pavis, 1980.
[2] Ver Auge, 1994.
[3] Ver Deleuze e Guattari, 1988.

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