quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Lado Épico da Cena ou a Ética da Palavra

Este artigo pretende apresentar, de forma sintética, o trabalho com o texto em performance desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Vocalidade e Cena. Assim sendo, as referencias bibliográficas pretendem dar indícios do marco conceitual que sustenta este trabalho, que não pode ser desenvolvido no presente formato.

O texto cênico é geralmente considerado como uma realidade homogênea. Porém, a materialidade dessas ‘texturas verbais’ caracteriza-se pela sua variabilidade e heterogeneidade. De fato, um texto shakespeareano coloca desafios aos atores muito diferentes daqueles contidos numa peça de Ibsen, por exemplo. Contudo, esse terreno instável que é o texto em performance é atravessado, em todos os casos, por um número de dimensões que chamamos ‘modos’, não no sentido dado ao termo no campo da lingüística, mas como modos musicais. Mais ou menos explícitos, em toda textura verbal convivem diversos modos de enunciação, diversas materialidades a serem modeladas em performance, que surgem da combinação de camadas de modos textuais. Essa materialidade do texto se realiza em cena na materialidade da voz.
No campo dos estudos teatrais, profundamente influenciado pela crítica literária, tende-se a definir a voz como ‘transito’ entre corpo e sistemas de códigos lingüísticos; e/ou entre o corpo que profere e o que recebe esse proferimento.[1] Abordada como tránsito entre dois pólos conceitualmente bem definidos, a voz constitui-se em um não-lugar.[2] No desejo de outorgar-lhe entidade de objeto, definimos a voz como uma produção do corpo capaz de gerar significados complexos, controláveis em cena. Assim, a voz alinha-se conceitualmente ao que, de uma forma geral, entendemos como movimento, constituindo-se ambos em categorias análogas. Porém, sendo sustento da palavra, à qual excede, a voz comporta maior definição do que o movimento na hora de produzir significado em performance.

Numa superfície de 360° constituída em diversos planos fixos e móveis, as esferas da voz e a palavra, do desenho acústico e da música em performance estabelecem um complexo de relações que reconhecemos como a dimensão acústica da cena. Nesse contexto, o corpo em performance torna-se o ‘palco’ primeiro; lugar de intersecção entre as dimensões visual e acústica da cena. Entendemos assim a voz como um entre[3]/lugar que abriga a palavra, situado no cerne da dimensão acústica da cena. Na dominância de um modo sobre outros se constituem os gêneros em performance. Nas frestas que se abrem entre modos de enunciação e gêneros; entre as diversas presenças em performance e as audiências; entre as formas do si mesmo e do outro surge o estilo pessoal de cada ator e atriz.

Assim, o modo narrativo é dominante, por exemplo, nos contos, nas epopéias; o discursivo nos textos argumentativos; o poético, nas diversas formas que assume a poesia e em todo texto que atinja a intensidade sintética que lhe é característica; o modo cênico configura-se na tragédia, na comédia, no drama, na ópera; o instrutivo/ normativo, nas poéticas, nas retóricas, nas gramáticas, nas bulas, nas receitas, nos diversos corpus jurídicos; e o informativo nos gêneros jornalísticos, nos relatórios, entre outros. Porém, qualquer texto composto para ser performado, como é o caso do texto teatral, abriga, implícita ou explicitamente, de forma constante ou esporádica, ou até em potencia, esses seis modos de enunciação.

Percebendo o texto a partir de seus modos distanciamo-nos da idéia do texto como letra, para abordá-lo como evento acústico. Inspirados em procedimentos originados no campo da música modal e tonal, chamamos de modulação ao processo através do qual mudamos a dominância de um modo de enunciação sobre outro. A modulação do texto não é uma adaptação, mas um mecanismo através do qual, a partir de um texto dado, explicitamos e valorizamos um modo, antes implícito ou em potencial. Este procedimento inicia-se em uma intensa aproximação ao texto do qual se parte, seja este de autor ou originado na tradição oral, para fixá-lo, em última instância, em uma nova organização.

Assim, um material predominantemente narrativo pode transformar-se, por exemplo, em texto cênico sem abandonar as características do texto original. Neste contexto, o critério semântico, dominante na hora de escolher as palavras que definirão a geografia peculiar de cada texto, abandona suas características estritamente etimológicas para ser intensamente afetado pelo seu caráter fônico, ou seja acústico. Na modulação, permanecemos aderidos à superfície sonora das palavras, e definimos as escolhemos pelo grau de resistência ou fluidez que apresentem em performance. Nosso problema não reside na higiene vocal, nem em garantir o que se entende por inteligibilidade do texto em performance (ou seja, articulação definida e projeção da voz). Nosso problema é a criação de sentido em cena a partir do processo que vai da abordagem do texto até sua concretização na palavra.

Os modos verbais contribuem também para a definição da personagem como lugar de fala, noção esta que considera sua existência enquanto devir, partindo da produção de voz e palavra em cena, e sem contrariar o caráter fluido mesma. A personagem como lugar de fala configura-se a partir de ‘como se diz o que se diz’. Dos modos dominantes nas texturas verbais, da materialidade vocal de quem atua e dos seus estilos de atuação surge a alquimia de tempo e espaço que dá lugar à personagem em cena. O modo narrativo em performance descortina o lado épico da personagem, e traz como ele à cena uma peculiar experiência de tempo e espaço.
A epopéia de Sherazade flui através das noites quando, desde o mais íntimo do espaço privado da câmara real, ela viaja em cada história até um público infinito, costurando, noite a noite, palavra a palavra, a ferida aberta na sua comunidade. Um único relato pode, sem nos tirar do lugar, nos levar do micro universo de uma pedra, até o espaço sideral cheio de estrelas. A mobilidade que o tempo/espaço narrativo em performance propicia é somente comparável a alguns casos do cinema. Repetição e variedade constituem-se em coordenadas na hora de mapear as diversas qualidades de memória que motivam a narração.

O modo narrativo em cena desenvolve a personagem numa temporalidade e espacialidade estendida. As mudanças de foco imprimem uma mobilidade no texto que requerem de uma definição da personagem pautada na flexibilidade. A diversidade de posições ou distancias que a personagem épica pode assumir com relação á cena lhe outorgam um caráter múltiplo. A personagem épica não ‘reage’ a uma situação dada, ela ‘age’ com autonomia, mudando o estado de coisas. A recorrência do narrativo, das canções, da poesia na obra de Bertold Brecht podem ser entendidas como evidencia das potencialidades do lado épico da personagem.
O potencial ético e político da narrativa já se perfilava claro para Walter Benjamim na década de 1930; o premonitório de sua percepção pode ser apreciado hoje:
Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

Uma das causas deste fenômeno é obvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. [...] da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. No final da [I] guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha e não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano (Benjamin, 1986, 197-8).

Contar e ouvir contar requer de ambos, ouvinte e narrador, uma permanência, sem pressa, que renova um espaço de troca de experiências, vasto o suficiente para abrigar a dimensão estética do ato ético, estreitando vínculos, abrigando, propiciando o conselho. Nesse lugar único entre quem conta e quem escuta, a palavra assume sua dimensão ética e estética. A relevância deste lugar na formação de artistas e cidadãos surge assim de forma irrefutável.



Bibliografia:
AUGÉ, Marc. Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da superrmodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 1994.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e Historia da Cultura. Pp. 197-221. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
DAVINI, Silvia. Voice Cartographies in Contemporary Theatrical Performance: an Economy of Actor’s Vocality on Buenos Aires’ Stages in the 1990s. (Doutorado em Teatro), Queen Mary College, Universidade de Londres, 2000.
DELEUZE, Gilles e Félix GUATTARI. A Thousand Plateaus - Capitalism & Schizophrenia. London: The Athlone Press Ltd., 1988.
PAVIS, Patrice. Diccionário del Teatro: Dramaturgia, Estética, Semiología. Barcelona: Paidós, 1980.
[1] Ver ‘Voz’ em Pavis, 1980.
[2] Ver Auge, 1994.
[3] Ver Deleuze e Guattari, 1988.

O Corpo Ressoante: Estética e Poder no Teatro Contemporâneo

Resumo: O presente artigo se propõe a iniciar uma crítica às abordagens da personagem, baseadas na introspecção, iluminar suas implicações políticas e estéticas e apresentar, como forma de superação das mesmas, a noção do ‘corpo ressoante’. Alinhado com as micro-políticas do desejo, o corpo ressoante se apresenta como alternativa de superação às abordagens da atuação baseadas na introspecção. A implicação pessoa/ ator-atriz/ personagens coloca uma série de questões que servem de ponto de partida para examinar o crescimento de abordagens introspectivas na atuação no contexto de governos totalitários; a dominância da emoção individual sobre a comoção coletiva, a opacidade que assumem o autor e a técnica e a progressiva desconsideração do público no teatro a partir da segunda metade do século XX.

Como qualificar o processo do corpo humano em performance? Quais os domínios e as fronteiras entre a pessoa, o ator ou a atriz e a personagem em cena? Quais as atribuições de cada um deles? Como é que a pessoa se reconhece a si mesma como tal? Quanto há dela ou dele na personagem que apresenta?

A reflexão conceitual sobre os procedimentos de atuação se manifesta escassa quando confrontada com questões cruciais como estas, porém, pouco freqüentes nas discussões sobre o tema. Mas se é verdade que, de alguma forma, perguntas como estas podem ser hoje produtivas, a partir de quando foi que, mesmo implicitamente, elas adquiriram vigência? Quando foi que o corpo em performance adquiriu a atual densidade na relação pessoa, ator/atriz e personagem?
Algumas linhas de argumentação desenvolvidas a partir destas últimas perguntas podem iluminar circunstâncias chave para a compreensão do papel dos atores, dos autores e do público no teatro contemporâneo.

Introspecção e totalitarismos.
Os questionamentos a respeito dos alcances e limites da relação ‘pessoa/ator-atriz/personagem’ assumem o atual perfil e intensidade no contexto do teatro moderno ocidental. Não resulta provável supor que questões do gênero circulassem no imaginário de atores românticos ou elisabetanos, por exemplo. Assim, é possível vincular a origem dos mesmos às inovações propostas nas primeiras décadas do século XX por Constantin Stanislavski que, desde então, permanecem no cerne da formação e da produção teatrais internacionais. Consequentemente, eles surgem de uma abordagem introspectiva da atuação que, de um modo aparentemente paradoxal, promove fortes implicações políticas, incidindo também de forma peculiar sobre o a palavra em performance na cena contemporânea. A história recente do teatro em Buenos Aires oferece bons exemplos neste caso.

Se na década de 1980 o retorno à democracia resultou no boom do teatro de grupos, a introspecção nos processos de formação e criação de atores e atrizes se intensificou consideravelmente durante os governos ditatoriais, quando a produção dramaturgica também se viu abalada (DAVINI, 2008: 149-153; 211-216). É nesses períodos que cresce a idéia de um ‘dentro’ que aparece como alternativa de fuga a um ‘fora’ atravessado pelo horror. Bloqueadas as possibilidades de exposição, adere-se a uma tradição psicologista e ‘interiorizante’. A sincronia da atitude introspectiva na atuação com os governos totalitários pode verificar-se inclusive no caso do mesmo Stanislavski, que desenvolveu seu trabalho sob a vigilância do poder stalinista. Assim, é possível vincular a ênfase na introspecção, que outorga uma densidade nova à relação pessoa/ator-atriz/personagem, com estratégias de sobrevivência sob a tutela de sistemas totalitários, iluminando uma de suas implicações políticas.

Emoção / comoção.
Fundada na procura da emoção de quem atua, as abordagens baseadas na introspecção acentuam também o papel da emoção individual de cada ator em cena. Se a palavra ‘emoção’ indica uma posição interior, uma intensidade que procura manifestar-se em um movimento de dentro para fora’, a palavra ‘comoção’, indica um movimento em solução de contigüidade, complementar, ‘em companhia de’, grupal. A separação dentro/fora e o movimento individual e unívoco ‘de dentro para fora’ que invoca a ‘emoção’ ficam mais explícitos ainda quando confrontados com os múltiplos movimentos solidários que a comoção invoca. A constante procura em prol da emoção tem produzido frequentemente atores que, trabalhando sobre sua memória emotiva são capazes, por exemplo, de chorar proficuamente sem necessariamente produzir a menor comoção na platéia.

A progressiva valorização da emoção de cada ator e atriz na formação e na performance teatral tem sido inversamente proporcional à desvalorização da comoção como objetivo da cena, que foi caindo ‘fora da moda’ ao longo do século passado. O exemplo do teatro de Bertold Brecht reforça esta linha de argumento quando, em sua tentativa de produzir algum efeito concreto sobre o público através de um jogo de identificações e distanciamentos, se afasta explicitamente da proposta stanislavskiana, evitando toda introspecção e colocando-se como alternativa ao modelo realista.

Já na segunda metade do século XX, e apesar da constante procura por desafetar a atuação de psicologismo, a ênfase na individualidade do ator colocada por Stanislavski mantém sua vigência nas tendências de Teatro Laboratório que, diversas em aparência, compartilham da mesma linhagem conceitual. O trabalho sobre a individualidade dos atores se acentua então até chegar, em alguns casos, ao ponto de prescindir concretamente do público, como foi o caso do último período de produção de Jerzy Grotowski, definido pela noção da arte como veiculo. Desvenda-se aqui outra das implicações políticas do acento na introspecção na atuação originada no realismo no teatro que, despida agora de psicologismo, mantém seu caráter introspectivo que resulta em uma certa desconsideração com relação ao público no teatro, mesmo quando derrubada a ‘quarta parede’.

A diminuição no fluxo de público em muitos circuitos teatrais, registrada em diversos médios especializados ou, em outra ordem de coisas, o revival do clown, cuja existência em cena se dá em relação direta com o público, podem ser entendidas como respostas a essa espécie de desconsideração com relação ao publico antes mencionada. A responsabilidade por esses fenômenos, frequentemente atribuídos à incidência da TV e do cinema, retorna ao seu genuíno lugar: as praticas teatrais. Em fim, a excessiva ênfase em uma emoção de caráter individual, produz um teatro bastante funcional ao capitalismo. Provavelmente ali resida a grande incidência dos caminhos introspectivos na atuação no cinema.

Emoção ou técnica?

O estúdio de Ricardo Bartís, figura chave no teatro em Buenos Aires, é procurado principalmente por atores profissionais, com muita formação e experiência, que buscam superar suas modalidade de atuação por não encontrarem mais atrativo, possibilidades de crescimento ou risco nelas. Ele vincula a origem dessas dificuldades a uma preocupação exacerbada por “sentir” que não mais contribui para atingir modos eficazes de “estar” em cena. Produzir ‘estados de atuação’ eficazes e poder retornar a eles não requer ‘emoção’ mas de inteligência, capacidade de decisão e domínio técnico. Os procedimentos introspectivos, continua Bartís, “impõem comportamentos monásticos, que afastam as possibilidades de ativar os efeitos múltiplos e devastadores do gozo e do prazer, e não desenvolvem a capacidade de organizar e acumular informação que permita aos atores a repetição.”[i]

Se bem em suas origens os procedimentos introspectivos configuraram estratégias eficazes no sentido de superar estilos extremadamente representativos, ingênuos ou caricaturais de atuação, a prolongada reincidência neles nutre hoje uma intensa confusão entre a pessoa, o ator ou a atriz, e a personagem, cujas marcas se deixam sentir na performance do texto. Procedimentos de improvisação ou paráfrase, que apontam à apropriação do texto por parte do ator, têm contribuído também para outorgar uma progressiva opacidade ao autor no teatro contemporâneo.

A personagem como entidade fixa, surgida duma biografia unívoca, trabalhada a partir de todo o que nunca será concretamente apresentado em cena, a literalização/desvocalização do texto teatral, resultam também da idéia da personagem como um ‘sentir’ que, sem ancoras técnicas, se confunde na pessoa. Liberado da idéia de uma identidade taxonômica, o “corpo ressoante”, o mais humano dos corpos, não naufraga nas profundezas do sentido enquanto conteúdo; ele é capaz da fluidez necessária para surfar na superfície do texto, dessa geografia que ‘dá’ forma, e nela, sedimenta múltiplos sentidos.

Ressoar é abrir e multiplicar sentidos e requer, portanto, de um imaginário em constante expansão nutrido por uma prática conceitual sintonizada com as temperaturas micro-políticas do desejo. Conduzir-se em ressonância requer de técnica. Capaz de atualizar o furor vital que nos coloca em estado de devir-outro, o ‘corpo ressoante’ supera a auto reflexão ensimesmada ‘pessoa, ator/atriz e personagem’, se afasta da introspecção solitária, para multi(im)plicar-se, para co-mover, um dos pressupostos da existência do teatro. O corpo ressoante também é uma questão de poder.


Bibliografia:
BLANC, Natalia. Diálogo Silvia Davni Existe una tendencia a despreciar al espectador. Jornal
La Nación, Suplemento ADN Cultura, pp 28-29, Buenos Aires, Sábado 22 de março
DAVINI, Silvia A. Cartografías de la Voz en el Teatro Contemporáneo. El caso de Buenos
Aires a fines del siglo XX. Colección Textos y Lecturas en Ciencias Sociales, Buenos
Aires, EdUNQ, 2007. ISBN 978-987-558-127-2
_______ O Beijo de Romeu e Julieta. Tempo e Performance. Org. Medeiros, Maria Beatriz
de, Monteiro, Marianna F. M., Matsumoto, Roberta K. Editora da Pós-graduação em
Arte da Universidade de Brasília. Brasília, Janeiro de 2007. ISBN 978-85-89698-12-2.
_______ Vocalidade e Cena: tecnologias de treinamento e controle de ensaio. Folhetim –
Teatro do Pequeno Gesto No 15, pp. 59-73. Rio de Janeiro, Rioarte, 2002.
[i] As referências a Ricardo Bartís neste artigo surgem da entrevista que me concedeu o 04 de maio de 1999 em Buenos Aires. A publicação de uma versão integral da mesma, junto a uma seleção das 47 entrevistas realizadas como parte da minha pesquisa de doutorado, encontra-se em período de edição.

O Beijo de Romeu e Julieta

Resumo: Neste artigo pretendo argumentar sobre a palavra em performance como experiência temporal, sobre a materialidade da palavra em cena, e sobre a abordagem da forma como sentido sedimentado, a partir da consideração do Soneto no Ato I, Cena V de Romeu e Julieta, de William Shakespeare.

‘Romeo foi o grande amor de Julieta. Porém, quando ele jaz moribundo, ela se despede dele com um tímido beijinho no rosto, ou um abraço amistoso.’ Com essas palavras Juana Libedinsky introduz o artigo, publicado em fevereiro de 2006, no qual comenta o projeto de lei que estaria sendo debatido na Grã Bretanha no sentido de limitar o ‘contato corporal’ nas peças encenadas por adolescentes, principalmente em contextos educacionais (Libedinsky, 2006, p 18).

Figuras chave da arte e da cultura britânicas se manifestaram a respeito desse documento, segundo o qual, os professores de artes cênicas devem censurar ou adaptar as peças teatrais para ‘proteger as crianças e os adolescentes, sem deixar-se influenciar por argumentos sobre a necessidade de respeitar as versões integrais das peças’, em cujas encenações somente devem ser permitidos ‘contatos acidentais’ e ‘abraços amistosos’ (Libedinsky, 2006, p 18). A respeito dessa iniciativa, Simon Blackburn, professor de filosofia da Universidade de Cambridge e autor de Luxuria, um livro de ampla aceitação tanto no ambiente acadêmico quanto pelo público em geral, declara:

Obviamente é um absurdo. Desse jeito, o final duma tragédia como Romeu e Julieta perde o sentido. Além do mais, por sua complexidade, os estudantes que interpretam Shakespeare não são crianças de jardim de infância, se não os adolescentes, que já tem visto adultos comportando-se como adultos na TV ao chegar em casa. Pretender manter-los baixo numa atmosfera de falsa inocência faz sentido somente para uma sociedade que se sente incomoda perante o sexo. Mas esse é um problema dos adultos, não dos meninos (Blackburn in Libedinsky, 2006, p 18).

O diretor artístico do teatro shakespeariano The Globe, Dominic Dromgool, é muito crítico com relação a esse projeto que, segundo entende, pretende proteger os meninos de algo que não devem ser protegidos: ‘Quanto mais entendam sobre o amor e a paixão, melhor. Shakespeare trata esses temas com sensibilidade e compaixão. Mostra aos meninos uma parte importante das emoções humanas’, explica (Dromgool in Libedinsky, 2006, p 18).

Os funcionários galeses se defenderam dizendo que o problema foi criado pelos médios de comunicação que, segundo eles, ficaram ‘histéricos’ com a proposta, quando basicamente se tratava de ‘uma série de sugestões sobre a forma em que se deve interpretar o afeto no palco, com relação às quais qualquer professor de teatro competente deveria estar familiarizado’ (Libedinsky, 2006, p 18).

Para Benedict Nightingale, crítico do jornal The Times, as diretrizes resultam ‘estúpidas’ e a réplica dos funcionários galeses insuficiente. ‘O que podemos esperar depois disto? Um Hamlet que castamente se despede de Ofélia cumprimentado-a com a mão duma das torres do castelo de Elsinore? [...] Mutilar grandes obras nunca solucionará nada’, concluiu o crítico (Nightingale in Libedinsky, 2006, p 18).

A questionada resposta dos funcionários, em principio, se origina em um caso de suspeita de abuso sexual reportado em aulas de artes cênicas em uma determinada escola galesa. Porem, a argumentação parece orientar-se mais no sentido de regulamentar um suposto potencial erótico das peças teatrais que, além de discutível, configura um desvio importante com relação às circunstancias que motivaram a polemica.

Perante a repentina necessidade duma pretensa regulamentação da ‘forma de interpretar o afeto no palco’, que contempla inclusive a implementação de instrumentos legais, e até a possibilidade de censura daqueles casos ‘difíceis de resolver’ nas peças, duma perspectiva moralista, poderia questionar-se, para começar, por que razão tamanha necessidade surge somente agora? Com base em que os funcionários galeses se sentem habilitados para definir normas no campo das artes? Finalmente, o fato de que uma controvérsia dessas características surja justamente nas mesmas escolas, onde as peças deveriam ser abordadas, examinadas e apresentadas na integra, resulta ainda mais surpreendente. Porém, se a fragilidade dos argumentos dos funcionários galeses parece evidente, as pertinentes contra-argumentações apresentadas aos mesmos evidenciam alguns signos de cuja consideração surge um leque de questões produtivas.
De fato, como Blackburn nota, um manto de falsa inocência não protegerá às audiências de nada; porém, certamente conseguirá afasta-las da experiência artística que as peças propõem. O desenvolvimento temático dos sentimentos humanos e sua implementação em cena na obra de Shakespeare é vasto, sofisticado e consistente. Contudo, se bem a afirmação de Dromgool a respeito do amplo entendimento sobre o amor e a paixão em Shakespeare é verdadeira, também é certo que essa compreensão vai muito além da consideração de determinados gestos em performance.

Das frestas que ambigüidades como essas abrem nas declarações de esse notáveis críticos, docentes e diretores teatrais, é possível visualizar uma outra questão que vale a pena examinar com mais detalhe, a respeito da qual eles denotam uma certa ‘a-percepção’: a materialidade do texto teatral no tempo-espaço da performance, e a dimensão da forma nessa materialidade. Assim, a polemica surgida a partir do beijo com o que Julieta de despede de Romeu toma outra dimensão quando percebida a partir de um outro beijo que acontece logo depois que eles se vêm por primeira vez no baile na residência dos Capuleto, cujas peculiaridades frequentemente passam despercebidas, inclusive nas publicações especializadas na matéria. A consideração dessa cena nos permite redimensionar o valor da forma do texto teatral, ao tempo que ilumina a dimensão da palavra em performance como experiência temporal.

O Beijo/Soneto
No Ato I, Cena V de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, Romeu e Julieta se falam pela primeira vez e, nesse mesmo momento, começam a falar em verso. Os quatorze versos que compreendem essas primeiras réplicas de ambos, organizados em três quartetos e um dístico,configuram um soneto inglês, uma forma poética profundamente dominada por Shakespeare. Assim, o primeiro contato entre Romeu e Julieta acontece no seguinte dialogo:

Romeo:[To Juliet] If I profane with my unworthiest hand
This holy shrine, the gentle sin is this;
My lips, two blushing pilgrims, ready stand
To smooth that rough touch with a tender kiss.
Juliet: Good pilgrim, you do wrong your hand too much,
Which mannerly devotion shows in this;
For saints have hands that pilgrims’ hands do touch,
And palm to palm is holy palmers’ kiss.
Romeo: Have not saints lips, and holy palmers’ too?
Juliet: Ay, pilgrim, lips that they must use in prayer.
Romeo: O! then, dear saint, let lips do what hands do;
They pray, grant thou, lest faith turn to despair.
Juliet: Saints do not move, though grant for prayers’ sake.
Romeo: Then move not, while my prayers’ effect I take (Shakespeare 1998 pp. 833-4).
[1]

Se bem muitos não duvidariam em afirmar que a aparição repentina desse soneto na peça obedece a um capricho convencional, pelo menos neste caso específico, essa afirmação resulta, no mínimo, precipitada. Em algumas publicações em língua inglesa que abordam a preparação vocal para a cena e a performance do texto teatral, se indica que, pela temporalidade que imprime a través de suas diversas formulas rítmicas, a função desse soneto é intensificar o lirismo da cena.
[2] Porém, se bem isso é verdade, a significação desse soneto tem uma abrangência que vai além de um aumento da intensidade em performance.

Nos textos shakespeareanos, o desenvolvimento da palavra não se dá para suprir carências no plano cenotécnico; muito pelo contrario, a palavra é o material a partir do qual se modelam a peça e as personagens. Desde o momento que Romeu e Julieta se vêm pela primeira vez, se falam compartilhando uma mesma forma; assim, desde esse mesmo instante, eles ‘são um’. Se bem as falas deles são acompanhadas por ações visuais, a existência da cena se dá nos diversos planos de significação que as falas atualizam. Neste caso, as palavras antecipam em tudo a tragédia, contribuindo assim para uma imediata definição do destino dos protagonistas. A velocidade vertiginosa de Romeu, e sua direcionalidade, sempre adiante, que o faz entrar na festa, pular o muro do jardim e partir para o exílio, ficam já estabelecidas nesse dialogo no contraste produzido pela reciprocidade que, permanecendo sozinha perante ele, Julieta consistentemente oferece em cada réplica. Esta situação os constitui desde então em ‘um par’. Assim, o único que é realmente imprescindível para a definição das personagens em performance é fazer que os atores sejam capazes de fazer soar o texto de modo que ele possa ser ouvido em todas suas dimensões. Essa temporalidade, essa densidade das personagens, anunciadas no soneto, irão se consolidando ao longo da peça, de um monologo para outro, ao tempo que se define o destino trágico de ambos.

Em outro plano de significação, o soneto de Romeu e Julieta provavelmente se constitui na forma mais acabada, concreta e ao mesmo tempo elegante, de unir um casal em todas suas dimensões, inclusive eroticamente, em cena. O desafio em termos de atuação desse soneto se dá em que essa união somente se realizará no presente da performance quando a voz de um se funda na voz do outro, em solução de continuidade, apresentando as velocidades e os ritmos de cada um integrados uma forma única. Assim sendo, o soneto em sí mesmo é o beijo. Deste ponto de vista, a forma não é convenção nem continente do sentido, senão sentido em si mesma. Perceber a forma como sentido ‘densificado’, precipitado, na línea de Peter Szondi,[3] torna iniludível para os atores a demanda de fazer possível que as audiências ouçam a forma, de modo que o sentido completo do texto se realize em performance.

Para Ricardo Bartís[4] o verso envolve o perigo de referir-se a uma idéia moderna das convenções que, segundo ele, complica a recepção do texto. Ele entende esse tipo de material como arqueológico, e acredita que, no caso de Shakespeare, as traduções liberam do verso aos atores de língua não inglesa, algo que os atores de língua hispânica não podem evitar com relação ao teatro espanhol clássico. Para ele, como para muitos, o teatro em verso é o ‘paradigma da convenção’ (Bartís in Davini, p.237, 2000).

O desenvolvimento textual durante o período do Teatro Elisabetano e do Século de Ouro espanhol não responde, como freqüentemente se sugere, à carência de recursos visuais disponíveis naquelas épocas; a voz e a palavra são os materiais básicos do teatro produzido nesses períodos. Assim sendo, a palavra em performance se constitui no ‘lugar’ da cena. Sua presença não vem suprir a falta de nada; ela ‘é’ a cena.

Um clássico é um texto que, vindo do passado, fala ao futuro, declara Bartís, um artista que, ocasionalmente, aborda esse tipo de repertorio. De fato, um texto fala através dos tempos quando constrói mundo; e o mundo, nesses textos, está na palavra em performance. Neles, as palavras transcendem o etimológico, para constituir mecanismos de sentido no tempo/espaço da cena. Em qualquer uma de suas formas, o texto é um material, não uma convenção, e sua forma, sentido sedimentado. Assim, o desafio que os textos propõem é o de atualizar em performance o sentido sedimentado nessas diversas formas.

As muitas vozes que um monólogo clássico atualiza em performance na voz dum único ator, o constitui num caso complexo de discurso indireto e num desafio imenso para os atores. O peso adquirido pelas palavras, depois de anos de serem trabalhadas una a una, pelas propostas vinculadas ao realismo, tem muitas vezes dificultado a atualização dessas vozes, e demanda hoje una nova atitude na dramaturgia e na formação para a cena, à medida dos atores e da situação. Assim, a resistência a deixar-se levar por um suposto fluir ‘natural’ do texto, a negação do psicológico e das personagens de composição, e a neutralização do tipo de controle exercido sobre as palavras pelo realismo no teatro, são recursos que nos aproximam a uma idéia fluida da personagem e, assim, nos aproximam da vocalidade.

Atualizar as dinâmicas de textos complexos em performance requer de trabalho sobre sua materialidade. Ao abordar o texto teatral como um todo, percebe-se que muitas palavras estão ali principalmente para demorar a chegada de outras, separando e assim, melhor exibindo aquelas palavras cruciais para o sentido da obra. Essa experiência temporal que é o texto em performance se contraria quando, trabalhando semanticamente, palavra a palavra, se contraria a dinâmica da fala.

Em grande medida, o teatro não permite a poesia quando não dá espaço para que a cena surja na palavra, quando se conforma com atores cujo trabalho se baseia exclusivamente no carisma pessoal, quando se trabalha aparte do que realmente se vê e se escuta em cena. Quando os estilos vocais perdem contato com as audiências às que são expostos, se constituem em ‘não-lugares’, e começam a operar aparte da materialidade da palavra, movimentando-se no terreno código do código. Atualizar em performance o sentido sedimentado na forma do texto depende da capacidade dos atores para fazer com que a forma seja ouvida em cena de forma que o texto se atualize em todas suas dimensões e a palavra se torne ato.

Entendendo o texto como ação, afastando-o de noções literárias, o espaço aberto pelos estudos da performance pode ser produtivo para abordar o teatro clássico. A pesar que hoje críticos e teóricos se inclinam a perceber inclusive seus próprios textos como performance, no campo dos estudos teatrais a dificuldade para abordar a performatividade do texto teatral, explicitamente escrito para a situação de performance, resulta um paradoxo, evidenciado na recorrente resistência com relação aos textos por parte dos diretores, nas dificuldades que encontram os atores na hora de aborda-los em performance, assim como na escassa atenção dispensada à vocalidad na produção crítica em geral.

O Tempo/Espaço em Performance

A performance pode ser entendida como uma função, como um novo gênero, como uma fusão de gêneros, como um gênero multidisciplinar, como evento, como intervenção política ou ambiental, como ritual, ou como pura ação ou presença. No esforço por defini-la conceitualmente, Marvin Carlson cita a observação de Mary Strine, Beverly Long, e Mary Hopkins no artigo “Research in Interpretation and Performance Studies: Trends, Issues, Priorities” onde se entende performance como um conceito que se contesta a sí mesmo. Esta expressão, formulada por W.B. Gallie, se refere a conceitos, como a arte e a democracia, que não somente consideram, senão que incorporam o desacordo em si mesmos, o que implica num permanente potencial de valor crítico a respeito de nossos próprios usos ou interpretações do conceito em questão (Strine, Long, Hopkins e Gallie in Carlson 1996 p.1).

Erik MacDonald sugere que a performance abriu na arte espaços antes inadvertidos na rede representacional do teatro, problematizando suas próprias categorizações e situando a especulação teórica dentro da dinâmica teatral. (MacDonald in Carlson 1996 p.1). Ao examinar o século xx a partir dessas perspectivas é possível afirmar que a performance redefiniu a cultura ocidental em todos os campos. A arte, a política, o mercado, a teoria e a vida cotidiana tem sido renovadas a través das perspectivas colocadas pelos estudos da performance, revelando a performatividade social e apagando, ao mesmo tempo, as fronteiras disciplinares.

Em quanto não somente a literatura, mais a história e a ciência reconhecem suas próprias instancias performativas, o teatro parece continuar lutando para liberar o texto de uma velha idéia que o remete à literatura e aos médios de análise produzidos por ela. Nesse contexto, é importante notar que a problemática da vocalidade, que se concretiza como uma experiência temporal em performance, atravessa a produção teatral como um todo. Sua re-inscrição no teatro e na cultura contemporânea é hoje urgente, não por uma questão de persistência nostálgica, senão pelos contornos estéticos, políticos e filosóficos que ela coloca em evidência.

Tendemos a pensar que a temporalidade não linear dos textos teatrais é prerrogativa dos textos contemporâneos. Porem, os textos clássicos se constituem numa temporalidade não linear que admite inclusive a simultaneidade de planos de significação em cena. O beijo, a cópula que une Romeu e Julieta, que os torna um, está no soneto. Esse beijo, na forma desse soneto inscrito no mapa instável da cena, que é o texto teatral, é aquele do qual somos geralmente privados, a tal ponto que somente comentamos aqueles beijos que se vêm, não este outro, que deveria escutar-se. Esse soneto ‘bem dito’, tão potente quanto desapercebido, é o grande desafio real da peça. Shakespeare escrevia o suficiente como para prescindir até de beijos explícitos. Porem, não deveria prescindir de atores capazes de atualizar a densidade noturna dos amantes de Verona.

Referências Bibliográficas:

BERRY, Cicely. The Actor and the Text. Londres: Virgin Books, 1993.

CRAIG, D. J. ed. The Complete Works of William Shakespeare. Londres: Henry Pordes
1998.

DAVINI, Silvia. Voice Cartographies in Contemporary Theatrical Performance: a
Economy of Actor’s Vocality on Buenos Aires’ Stages in the 1990s. Tese de
Doutorado em Teatro, 29 de junho de 2000, Universidade de Londres, Queen
Mary College.

LIBEDINSKY, Juana. “Impiden en las Escuelas el Beso de “Romeo y Julieta.”
Debaten un proyecto para limitar el ‘contacto corporal’.”-La Nación-Ed.
Impresa: Cultura, p.18. Buenos Aires: 18 de fevereiro de 2006.
http://www.lanacion.com.ar/archivo/nota.asp?nota_id=781709&origen=acumulado&acumulado_id=&aplicacion_id=12

LINKLATER, Kristin. Freeing Shakespeare’s Voice - The Actor’s Guide to Talking the
Text. New York, Theatre Communications Group, 1992.

SHAKESPEARE, William [trad. Carlos Alberto Nunes] Teatro Completo – Tragédias.
Rio de Janeiro, Ediouro.

SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac & Naify
Edições, 2001.

_______ Teoria do Drama Burguês (século XVIII). São Paulo: Cosac & Naify
Edições, 2004.

Silvia Davini é Ph.D em Teatro pela University of London, Queen Mary College, e graduada em Música pelo Conservatório Municipal de Buenos Aires. Cantora, atriz, encenadora e pesquisadora, desde 1993 é professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, onde se dedica à pesquisa da produção de novos estilos vocais em performance e sua interface com as novas tecnologias. Desde 2000, ela concentra o seu trabalho conceptual e artístico no marco do o Grupo de Pesquisa Vocalidade e Cena.
[1] Ato 1 – Cena V
Romeu [A Julieta] Se minha mão profana o relicário/ em remissão aceito a penitencia;/ meu lábio, peregrino solitário,/ demonstrará, com sobra, reverencia.
Julieta: Ofendeis vossa mão, bom peregrino,/ que se mostrou devota e reverente./ Nas mão dos santos pega o paladino./ Esse é o beijo mais santo e conveniente.
Romeu: Os santos e os devotos não têm boca?
Julieta: Sim, peregrino, só para orações.
Romeu: Deixai, então, ó santa! Que esta boca/ mostre o caminho certo aos corações.
Julieta: Sem se mexer, o santo exalça o voto.
Romeu: Então fica quietinha: eis o devoto./ Em tua boca me limpo dos pecados. [Beija-a]
Shakespeare, William [Trad. Carlos Alberto Nunes] Teatro Completo – Tragédias. “Romeu e Julieta” pp.27-8. Rio de Janeiro, Ediouro.
[2]. The Actor and the Text, de Cicely Berry, publicado em Londres, por Virgin Books, em 1993; e Freeing Shakespeare’s Voice - The Actor’s Guide to Talking the Text, de Kristin Linklater, publicado em New York, pelo Theatre Communications Group, em 1992, dão exemplos desse tipo de abordagens.
[3] Ver Teoria do Drama Moderno (1880-1950), e Teoria do Drama Burguês (século XVIII), ambos de Peter Szondi, publicados em São Paulo, por Cosac & Naify Edições, em 2001 e 2004 respectivamente.
[4] Diretor e ator de presença marcante no teatro argentino produzido a partir da década de 1980.

Voz e Palavra – Música e Ato

Silvia Davini

O que é a voz? Onde ela se dá quando falo? E quando canto? Essas questões, aparentemente tão simples, se tornam surpreendentemente complexas na mesma hora em que tentamos respondê-las. A produção de voz e palavra em performance vem sendo explorada há séculos no campo das técnicas vocais para o canto. Porém, no campo da formação do ator, o treinamento vocal se configura formalmente como área somente na virada do século XIX para o XX, na Inglaterra. No entanto, o desenvolvimento conceitual em torno do tema, em ambos os casos, continua incipiente.

No campo das técnicas vocais para o canto, um dos sintomas dessa pouca sistematização é a falta de conexão entre o fenômeno do qual se fala e os vários nomes que lhe são dados. O caso dos ‘registros’ oferece um bom exemplo para ilustrar essa situação. Chamamos de registros às regiões grave, média e aguda de uma mesma voz. Chamamos também de registros às categorias de uma voz enquanto ao seu desempenho, também chamada de ‘tessituras’. Assim, qualificamos as vozes femininas como sopranos, mezzo-sopranos e contraltos, e as masculinas como tenores, barítonos e baixos, categorias estas que, por sua vez, envolvem infinitas subclassificações. No entanto, como e de que forma se classificam as vozes, ou o que cada pessoa entende que seja uma soprano spinto ou coloratura podem também se tornar matéria de especulação. Finalmente, identificamos também como registros às categorias que definem a voz infantil, a adulta, a voz feminina e a masculina. Semelhante inconsistência torna improvável a produção de um discurso preciso sobre qualquer assunto, particularmente se nosso desejo é considerar a voz em sua fluidez como objeto. Assim, definir ou redefinir cada termo é uma prioridade no sentido de atingir alguma consistência conceitual no campo do treinamento vocal para a cena.

A abordagem do canto e da palavra em suas diversas manifestações como fenômenos cultural e estético, nos leva a retomar nossas perguntas iniciais. Começaremos então por revisar o que se entende por voz no campo da formação de cantores e atores. Focaremos nossa análise nas definições de voz formuladas nas publicações de Johan Sundberg, Kristin Linklater e Cicely Berry, autores cujo trabalho como mestres de canto e preparadores vocais de atores é referência internacional.[2] As posições que eles sustentam a respeito da voz, do canto, e da fala servirão de ponto de partida para nossa própria argumentação.

Essas considerações nos permitirão explicitar o que identificamos como a ‘abordagem instrumental’ da voz, dominante no canto e na atuação. Na tentativa de superar a abordagem instrumental, argumentaremos a respeito de nossa própria definição de voz como produção do corpo, capaz de gerar significados complexos controláveis em cena, na certeza de que um perfil estético produtivo se nutre inequivocamente de um desenvolvimento conceitual consistente.

A Abordagem Instrumental.
Johan Sundberg observa que “parece que sabemos exatamente o que queremos dizer com a palavra voz até o momento em que tentamos defini-la” (Sundberg 1987 p.2). Ele evita deliberadamente a terminologia das escolas tradicionais de canto, por considerá-la ineficaz, e recorre sistemáticamente à terminologia da física acústica e da engenharia eletrônica. As diferentes estruturas fisiológicas ativadas quando a voz é produzida são chamadas por Sundberg de órgão vocal; isto inclui o sistema respiratório, denominado por ele como ‘compressor’; as pregas vocais, que identifica como ‘osciladores’ e as cavidades ósseas e cartilaginosas, como ‘ressonadores’. Nesse contexto, Sundberg define voz como:

Os sons gerados pelo órgão vocal, incluindo as vibrantes pregas vocais, ou mais precisamente, por uma coluna de ar originada nos pulmões, modificada em primeiro lugar pelas vibrantes pregas vocais, e depois pelo resto da laringe, a faringe, a boca, e às vezes também as cavidades nasais. Assim, voz se torna sinônimo de som vocal. O timbre vocal (o som característico da voz) é determinado em parte pela forma em que o órgão vocal está sendo usado e, em parte, pela morfologia do órgão vocal (Sundberg 1987 p.3).

A rigorosa depuração terminológica que Sundberg implementa em seu trabalho parece não dar conta de superar a elusividade conceitual a respeito da voz ao concluir, de forma redundante, que voz é ‘um sinônimo de som vocal’.

Com relação à palavra, Sundberg declara que um órgão vocal gera grande variedade de sons vocais, alguns deles, sons falados que, quando arranjados numa seqüência adequada, produzem fala. Assim, Sundberg define fala como um código acústico para comunicação inter-humana. No canto, ele acrescenta, existem ambos: sons de fala mais ou menos modificados em timbres e alturas (Sundberg 1987 p.1).

A produção de um som falado é determinada por um número de fatores, significativos na hora de definir o registro e o timbre de uma voz. Um deles é a pronúncia ou os hábitos de fala, que determinam as especificidades do som, variando de acordo com as origens social e geográfica dos indivíduos; outro, as características, mecânicas e/ou morfológicas, de cada órgão vocal (Sundberg 1987 p.13).

Sundberg considera a voz como sinal acústico e a fala como código comunicativo, reforçando a idéia da voz como um instrumento para comunicar códigos da fala. Segundo ele, um ator usa o órgão vocal para produzir som vocal e fala; um cantor o utiliza como um instrumento musical (Sundberg 1987 p.1) [minhas itálicas].

A noção da voz como instrumento é clara aqui, inclusive na escolha do verbo. Contudo, esta noção é desestabilizada quando no Capítulo 7, perto do final do livro A Ciência da Voz Cantada, após desenvolver exaustivamente a idéia da voz como ‘instrumento’, Sundberg reconhece que o desempenho da glote, definida por ele como ‘oscilador humano’, é afetado pelas emoções (Sundberg 1987 p.87).

Esta constatação de Sundberg é suficiente para expor os limites de sua visão instrumental da voz, já que as emoções afetam aos instrumentistas, não aos instrumentos. No mesmo sentido, caberia questionar: se a voz é um instrumento, onde está o instrumentista? De fato, a voz se remete ao corpo que a produz, lugar do sujeito. Quanto à palavra, defini-la como código comunicacional significa, no mínimo, restringir drasticamente seu universo.

O estilo descritivo e analítico de Sundberg, abundante em enumerações, é um bom exemplo de quanto um repertório terminológico traz com ele ecos da opção discursiva onde se gerou a qual, por sua vez, se define a partir de uma esfera conceitual determinada. Assim, a obra de Sundberg é prova também dos limites da transferência direta de pensamento de uma área de conhecimento para outra, tão habitual no universo da formação vocal para a cena; e da necessidade de produzir um discurso que parta da consideração da voz e da palavra em performance.

Kristin Linklater define voz ‘primeiro como um instrumento humano, e depois como instrumento humano do ator’. Mais tarde, ela afirma que no caso da pessoa, a voz corresponde a um órgão físico, e no caso do ator, a um instrumento. Assim, segundo Linklater, se no dia a dia a voz expõe a pessoa, paradoxalmente, a voz como instrumento tenderia a funcionar como uma tela cuja função seria a de ocultar a pessoa. Com relação a isto, Linklater lembra Iris Warren, sua professora, indicando a um estudante: “Eu quero ouvir você, não a sua voz” (Linklater 1976 p.3).

Poderia dar-se o sujeito escindido de sua voz?

Linklater considera a ‘influência ambiental, os condicionamentos inconsciente, físico e psíquico e a estandardização estética’ não somente como determinantes do produto vocal, mas como suas ‘trancas’. Em relação à fala, Linklater declara:

‘Na arte da fala, eu tomo ‘forma’ como fala, e ‘conteúdo’ como intelecto e emoção’. As palavras –acrescenta– estão vinculadas às idéias e desvinculadas do instinto. O conteúdo, que caracteriza como ‘instintivo puro’ deve ser colocado na forma da fala. Contudo, para que esse conteúdo ‘flua’ satisfatoriamente, deve evitar-se a obstrução operada pelas acima citadas ‘trancas da voz’ (Linklater 1976 p.40).

Linklater desconfia da possibilidade de uma comunicação genuína. Se na colocação acima ela inicialmente alinha a palavra à forma e o intelecto ao conteúdo, em seguida distancia a palavra do instinto e a vincula ao intelecto, o que torna a palavra fonte de dúvida e incerteza.

O binarismo conceitual forma/conteúdo pode ser infinitamente multiplicado em outras oposições conceituais no trabalho de Linklater, tais como ‘cabeça/corpo’, ‘natureza/sociedade’, etc. Nessas polaridades, o lado positivo estaria ocupado pelo corpo e a natureza, e o negativo, pela cabeça e a sociedade (Linklater 1976 p.171). Neste sentido, a voz quando produzida por corpos em vínculo com a natureza, que cantam por prazer, sem treinamento, ocuparia o pólo positivo. Quando produzida por corpos educados dentro das normas da sociedade ocidental, privada da liberdade, que lhe era natural nas origens, ocuparia o pólo negativo. Mais uma vez, a voz é definida em relação a outras instâncias.

Vários são os questionamentos que surgem do discurso de Linklater. Um instrumento ser qualificado como ‘humano’? Caso isto fosse possível, esse ‘instrumento humano’ poderia ser considerado sinônimo de ‘órgão’? Um instrumento pode ser em si mesmo fator de ocultação? Um ‘órgão’ seria necessariamente uma instancia ‘reveladora’? E o sujeito, onde se localiza em sua proposta?

Cicely Berry começa definindo voz como ‘o meio pelo qual, na vida cotidiana, você se comunica com outras pessoas, e […] como você apresenta a você mesmo’(Berry 1993 p.7). Em seguida, ela desenvolve a seguinte idéia:

A voz é a mistura mais intrincada do que você ouve, como você o ouve, e como você inconscientemente escolhe usar isto que ouve à luz da sua personalidade e experiência [… a voz] é condicionada por quatro fatores: Ambiente, ‘Ouvido’, Agilidade física [e] Personalidade (Berry 1993 p.7).

O primeiro fator, ‘Ambiente’, circunscreve a influência social exercida sobre um indivíduo e, portanto, sobre sua voz. O processo de imitação através do qual uma criança modela a voz infantil à semelhança da voz adulta é um bom exemplo de influência ambiental. ‘Ouvido’ significa para Berry ‘percepção de som’, um pré-requisito e forte referência para a produção vocal. ‘Agilidade física’ refere-se à prontidão e à resposta muscular; como o ouvido, é também fortemente relacionada à vontade individual, ao prazer e ambos estão vinculados à autoconfiança. Sobre ‘Personalidade’ Berry diz: ‘É à luz da própria pessoa, que interpreta as três últimas condições, que você, inconscientemente forma a sua própria voz’. Outorgando ao fator Personalidade uma hierarquia superior a dos outros fatores determinantes; Berry traz uma idéia da voz como um fenômeno social, físico e psicológico (Berry 1993 pp.7-8).

Os quatro fatores considerados por Berry como determinantes para a produção vocal contribuem para definir a voz como uma combinação de ‘o que’ e ‘como’ alguém ouve e como alguém produz som. Neste processo, o que é corporal na textura vocal é tão importante quanto o que a condiciona externamente.

Berry começa definindo a voz como meio. Em seguida, introduz uma idéia da voz como fenômeno complexo, registrando o papel modalizador da percepção na produção vocal, na consideração de ‘o que’ e ‘como’ se ouve. O inconsciente, usualmente considerado pelos atores como relacionado a uma esfera incorpórea, permeia os quatro fatores reconhecidos por Berry, registrando uma interferência do psicológico e do social sobre o estritamente fisiológico e anatômico.

O discurso de Berry revela uma percepção mais abrangente do corpo e a consideração do papel do prazer, da autoconfiança e da vontade na produção de voz e de palavra revelam na sua proposta alguma consideração do sujeito. Porém, a visão dominante da voz como instrumento reaparece no seu discurso no reconhecimento da voz como aquela ferramenta do ator que deveria responder eficientemente às suas intenções ao declarar ‘quanto mais alerta e eficiente é a voz, mais precisas serão suas intenções’, reproduzindo o binarismo intenções/interno/incorpóreo - voz/superficial/corpóreo (Berry 1993 p.7).

Aproximações a uma Pragmática da Voz e da Palavra.
Se acreditarmos que o que dizemos sobre as coisas revela o que pensamos sobre elas, a instabilidade e descontrole conceitual, assim como a forçosa consideração da voz como instrumento no discurso produzido sobre a voz estaria nos indicando a necessidade de uma reflexão consistente, originada no campo da produção de voz e palavra em performance.
Um instrumento é uma ferramenta, uma prótese que utilizamos para um dado fim e, portanto, não é nem pode ser humano. Os limites entre corpo e instrumento são os limites entre o humano e o não – humano. Um órgão é parte de um sistema organizado em torno de certas funções, ou seja, de um ‘organismo’. O sistema fonatório está constituído por órgãos cuja função é produzir voz e palavra. Assim, a voz não pode ser confundida com um órgão; nem um órgão ou um instrumento podem ser confundidos com o que produzem. Por si só, um instrumento não pode ocultar, nem um órgão pode revelar nada. É o sujeito quem oculta ou revela; e o lugar do sujeito é o corpo. Em conseqüência, não podemos pensar a voz e a palavra sem pensar o corpo e o sujeito. Mais ainda, pensar a voz, a palavra, o corpo e o sujeito sem considerar a incidência da tecnologia sobre eles, especialmente a partir do século xx, pode comprometer seriamente qualquer tipo de consideração na matéria.

A idéia da voz como um meio, dominante no campo da semiótica teatral, pressupõe a existência de polaridades claramente definidas, tais como corpo e signo, um e outro; entre as quais fluem voz e palavra, de acordo com as exigências de uma e outra polaridade. Neste sentido, a voz configura um entre vazio, como um mero trânsito. Ao materializarmos esse entre, as polaridades se desmoronam, não há mais intenção/ voz, interno/superficial, corpóreo/incorpóreo. Há corpo, que produz fluidos, magnetismo, calor, onda, partículas, imagem, olhar, voz; um corpo/palco da primeira confluência entre a dimensão visual e acústica da cena.

De todas as produções do corpo, a voz se caracteriza por ser capaz de gerar significados complexos, cuja produção é susceptível de ser controlada em cena. Assim, consideramos a voz como uma produção do corpo na mesma categoria que o movimento. Porém, por constituir-se em lugar da palavra, a voz comporta uma capacidade de definição discursiva muito maior que o movimento (Davini 2000 p.60).

De fato, na hora de tentarmos compreender voz e palavra cabe perguntar também por que reflexões tão potentes, tais como a que surge da Teoria dos Atos de Fala, formulada por John L.
Austin ou a aproximação à voz como objeto, surgida do pensamento lacaniano, são sistematicamente desconsideradas no campo da música e dos estudos teatrais e retomadas pelos estudos da performance. Assim, ao falarmos da voz em performance não consideramos somente o canto e a cena, se não que situamos o assunto no espaço conceitualmente mais abrangente dos estudos da performance. Nessa perspectiva, entendemos a voz e a palavra como música e ato; o teatro e a música como performance artística; e a performance artística como uma modalidade da performance cultural.

Na mesma linha de pensamento, entendemos ‘palavra’ como palavra proferida, e a palavra escrita como ‘letra’, aproximando-nos assim da pragmática e distanciando-nos da literatura. Neste sentido, a voz se constitui naquele resíduo que excede à palavra. Consideramos a palavra em suas grandes dimensões: como fenômeno acústico, envolvendo os códigos musicais em sua totalidade, e como ato; música e cena que definem uma idéia da experiência que excede o estritamente comunicacional dos códigos informativos.

O conceito de vocalidade, como definido por Paul Zumthor, vem para superar o caráter individual e a-histórico dominante nos discursos vinculados à produção de voz e palavra em performance, considerando também a palavra do outro, dos outros em sua contingência social e histórica. Nesse sentido, entendemos por vocalidade a produção de voz e palavra por parte de um grupo dado em um tempo e lugar determinados. Esta idéia grupal e histórica da produção de voz e palavra vem incorporar também a problemática da evolução tecnológica que, incidindo sobre nossas percepções de tempo e espaço, incide também sobre nossas noções de sujeito e, portanto, de personagem, em fim, sobre o nosso corpo.

Consideramos a cena a partir de suas dimensões visual e acústica. O espaço acústico em performance é constituído pelas esferas da sonoplastia, da música e da voz e da palavra. Entendemos o corpo como lugar de confluência das dimensões acústica e visual e ‘primeiro palco’ da cena. Por produzir-se no corpo, definimos voz e palavra como um fenômeno acústico que se dá na conjunção das dimensões visual e acústica da cena. De fato, há uma dimensão imagética no som e por tanto, na voz, que nos faz associá-lo à fonte que o produz, neste caso, quem canta ou fala.

Podemos então falar de gestualidade num sentido amplo, compreendendo a dimensão visual como vinculada a gestualidade cinética, e a acústica, vinculada a gestualidade vocal. Longe de acentuar a dicotomia entre o visual e o acústico, a definição de uma gestualidade vocal vem ressaltar a presença de uma dimensão acústica, freqüentemente ignorada na cena contemporânea. Esta definição, que supera imprecisões da abordagem instrumental, dominante no campo das técnicas vocais para o canto e a cena, vem também superar uma dicotomia que atravessa a história do teatro e da música, na qual o movimento é vinculado ao corpo e a voz, ao intelecto.

Não há emoções nem intelecto sem corpo. Não há sujeito nem personagem sem corpo. No corpo entendido como lugar, as sensações evidenciam a existência das emoções e de uma atividade intelectual. Nele se manifestam todas nossas instâncias de individuação, no cotidiano e na cena, na forma de papéis ou personagens. A voz não se restringe a comunicar, nem a fazer mediações entre corpo e linguagem. A voz enquanto ato, é produzida no corpo que abandona para afetar outros corpos e retornar, eventualmente, através da escuta, ao corpo onde se gerou. A voz enquanto som se dá em uma esfera de 360°, em diversos planos, fixos e móveis, percebíveis inclusive através das paredes. A voz, em sua potência libidinal, atribui um lugar ao sujeito e à personagem. Não ‘usamos’ a voz. A voz ‘habita’ corpo e linguagem.

Bibliografia:
Berry, Cicely. Voice and the Actor. Londres, Virgin Books, 1973.
_______ The Actor and the Text. Londres, Virgin Books, 1993.
Davini, Silvia. Voice Cartographies in Contemporary Theatrical Performance: an Economy of
Actor’s Vocality on Buenos Aires’ Stages in the 1990s. Tese de Doutorado em Teatro, 29
de junho de 2000, Universidade de Londres, Queen Mary College.
_______ Vocalidade e Cena: Tecnologias de Treinamento e Controle de Ensaio Folhetim Teatro
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Linklater, Kristin. Freeing the Natural Voice. New York, Drama Book Publishers, 1976.
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Sundberg, Johan. The Science of the Singing Voice. Illinois, Northern Illinois University Press,
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_______ Chest Vibrations in Singers. París, Rapports IRCAM, Centre Georges Pompidou, No 22,
1979.

[1] As traduções das citações originalmente em inglês no presente texto são todas da minha responsabilidade.
[2] Sundberg (1936) é PhD em musicologia e professor de Acústica Aplicada à Musica no Department of Speech, Music and Hearing do Royal Institute of Tecnology, em Estocolmo. A voz cantada e a interpretação musical têm sido seus objetos de pesquisa desde 1970. Sua abordagem da voz é a mais cientificista.
Linklater é formada em Interpretação Teatral na London Academy of Music and Dramatic Art – LAMDA. Desde 1963 reside nos Estados Unidos e, desde 1997, leciona Artes Teatrais na Columbia University, New York. Seu trabalho se aproxima das tendências vinculadas às novas terapias nos Estados Unidos.
Formada na Central School of Speech and Drama de Londres, onde também deu aulas, Berry, dirige o Departamento de Voz da Royal Shakespeare Company desde sua criação. Muito próxima profissionalmente de Peter Brook, inaugura uma linha de preparação vocal para atores que se alinha com as tendências de democratização do teatro inglês na década de 196o.

Do Corpo como Instrumento ao Corpo como Lugar

Sulian Vieira Pacheco

Palavras-chave: noções de corpo, formação de atores, teatro contemporâneo.

Somente nas últimas décadas do século XX o corpo humano se tornou objeto de discussão nas Ciências Humanas, nos Estudos Culturais e na Filosofia. No que diz respeito às noções de corpo que circulam hoje no campo dos estudos teatrais, observa-se que a confluência sujeito-corpo no trabalho dos atores contribua para a opacidade na definição dos limites e extensões do que chamamos de corpo humano.

Neste artigo objetiva-se considerar mais pontualmente as noções de corpo como instrumento, como primeiro palco da cena e como lugar. [i] A princípio serão explicitadas as noções de corpo presentes em publicações de Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski, Peter Brook que tendem a considerar o corpo como instrumento do ator ou como organismo.

Desde o início do século XX, as publicações de Stanislavski têm sido referências para um grande número de propostas de formação de atores no Ocidente. Em seu discurso o corpo é constantemente tratado como ‘aparelho ou aparato físico usado pelo ator’, situando o corpo em uma categoria instrumental.

Observa-se nesta definição certa fragmentação entre o sujeito e seu corpo, que é extensamente ilustrada no discurso de Stanislavski por diversos binômios, como corpo/alma, corpo/mente, pensamento/sentimento, sentimento/expressão, circunstâncias externas/circunstâncias internas (Stanislavski, 1989: 59-70). Respondendo à mesma lógica fragmentária, a noção de ação física, introduzida pelo autor e intensamente vigente no teatro contemporâneo, que se associa mais ao deslocamento espacial por meio do movimento do que à voz e à palavra em cena, gerando outros binômios como corpo/voz e movimento/voz (Stanislavski, 1997: 1-5).

Jerzy Grotowski formulou o Teatro Pobre na busca por uma estética liberada dos aparatos tecnológicos e de tudo o que pudesse afastar o teatro de sua origem ancestral. Seu foco então recaiu sobre a relação entre o corpo do ator e a platéia, considerada por ele como essencialmente teatral (Grotowski apud Pavis, 1996: 75).

Peter Brook, diretor que propôs a noção do ‘teatro como um espaço vazio’, considera que Grotowski tenha obtido um resultado positivo na busca de um ‘teatro puro’, centrado no corpo dos atores que atribui valores aos objetos em cena significando tudo ao redor. Para Brook, o corpo dos atores no Teatro Pobre é o que sobra se subtraímos tudo o que é considerado supérfluo. O corpo é o ‘instrumento humano’, marcando distanciamento em relação ao tecnológico, ou seja, o que é considerado não-humano (Brook, 1990: 67).

Para Brook, é a maestria técnica, adquirida através do trabalho perseverante, que permite que o corpo deixe de ser um obstáculo na cena para ser um receptáculo. Ele alude assim à idéia do ‘ator santo’ formulada por Grotowski, na qual o corpo do ator é considerado como um receptáculo para o personagem, da mesma forma em que, nas perspectivas platônica, idealista ou cristã, o corpo o é para a alma. O personagem é considerado como uma existência anterior e ativa, que age sobre o corpo do ator, cuja preparação consiste em permitir a ação do personagem. Busca-se assim um corpo puro e passivo, como uma tábua rasa a ser inscrita ou mesmo o corpo como um espaço vazio, na perspectiva de Brook (BROOK, 1990: 66).

Ao propor a ‘via negativa’ no teatro, Grotowski objetiva que reconhecendo hábitos adquiridos e automatizados os atores possam desconstruí-los. De acordo com suas propostas, se estes hábitos não são percebidos, se instalam entre quem atua e seu corpo. Brook alia-se à proposta de Grotowski quando diz que o trabalho do ator ‘não deve objetivar o como fazer, mas o como permitir’ (BROOK apud BERRY, 1973: 01). Assim, os hábitos adquiridos socialmente são compreendidos como obstáculos que distanciam os atores de seus supostos corpos naturais.

Apesar das considerações de Antonin Artaud sobre o corpo terem se convertido em referência para o teatro experimental do século XX, o conceito de ‘Corpo sem Órgãos’ proposto por ele foi amplamente desenvolvido pelo discurso filosófico de Deleuze e Guattari. Para os autores Artaud não conseguiu progressos em sua proposta por não encontrar pontos de fuga no sistema de pensamento racionalista, do qual ele não se desvencilhou, e cujas estratégias de linguagem não são compatíveis com o desenvolvimento de um conceito como o de CsO. Deleuze e Guattari não compreendem o CsO como uma oposição aos órgãos, mas como uma oposição àquele modo de organização dos órgãos que se chama organismo, tomando o CsO como uma noção que refere-se para além do corpo humano exclusivamente.

Já a noção de corpo como ‘plano de consistência’ se realiza nos agenciamentos entre um CsO e outros. As noções de CsO e de plano de consistência são noções produtivas para abordar a complexidade da atuação e, sobretudo, da produção de voz e palavra em performance, uma vez que as categorias dualistas ou organicistas não comportam a simultaneidade e a densidade de toda esta demanda (Deleuze e Guattari, 1996: 14-5).

Considerando o crescente aumento das interações entre o corpo e a máquina, desde a segunda metade do século XX, Silvia Davini considera o lugar que a tecnologia tem ocupado em relação ao corpo humano. Observando as mudanças nos modos de produção e percepção de público e atores, ela propõe que, nesse marco, o corpo humano seja redefinido em relação ao não-humano (Davini, 2002: 60-1). Assim, Davini tem se aproximado de noções de corpo, tais como a de corpo como plano de consistência, no desejo de superar os limites das definições orgânicas (biológico-fisiológicas) ou instrumentais do corpo humano, como também tem formulado noções alternativas, tais como a do corpo como o ‘primeiro palco da cena’, a partir do qual o tempo e a cena atualizam-se (Davini, 1998: 38).

Ainda com o objetivo de abordar o corpo em performance em toda sua complexidade, define o corpo humano como um ‘lugar de produção de sentido’. A noção de corpo como ‘lugar’ inspira-se nas formulações de Marc Augè sobre os ‘lugares e os não-lugares’, a partir da hipótese de que a super-modernidade seja produtora de não-lugares: “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar” (AUGÈ, 1994: 73-4).

Augè cita Michel de Certeau ao afirmar que o espaço passa a ser um lugar na medida em que algo acontece nele e o define: “[...] incluímos na noção de lugar antropológico a possibilidade dos percursos que nele se efetuam, dos discursos que nele se pronunciam e da linguagem que o caracteriza” (AUGÈ, 1994: 76-7).

A noção de corpo como lugar nos aproxima assim das contingências históricas em que se dão os corpos dos atores, de modo geral, parecem ser pouco consideradas nas abordagens do corpo nos estudos teatrais. Assim, Davini reconhece o corpo também como um ‘lugar de intersecção entre as dimensões visual e acústica da cena’, uma vez que considera a voz e o movimento como produções corporais capazes de gerar sentidos, controláveis na cena (Davini, 2006: 309).

O corpo de quem atua agencia diversas dimensões simultâneas como o sujeito desejante, o grupo social a que pertence, o personagem como devir cinético e vocal, entre outras. A consistente explicitação e discussão de noções tais como corpo, voz, movimento, ação, personagem, entre outras, se faz importante uma vez que em cada contingência histórica são definidos procedimentos de formação de atores a partir dessas noções, bem como processos de ensaios e seus respectivos resultados estéticos e suas implicações políticas.

[i] A reflexão sobre estas noções corresponde a demandas surgidas a partir do projeto de Pesquisa de Doutorado de Sulian Vieira O Treinamento de Atores: a procura de um lugar de autonomia entre a técnica e a estética no teatro contemporâneo orientado pela Doutora Silvia Davini no Programa de Pós-Graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.

Bibliografia:
AugÈ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da super-modernidade. Campinas: Editora Papirus, 1994.
Berry, Cicely. Voice and the Actor. New York: Wiley Publishing, 1973.
Brook, Peter. The Empty Space. London: Penguin Books, 1990.
Davini, Silvia. O Jogo da Palavra, Humanidades-Teatro. No 44 -, pp. 37-44. Brasília: Ed. UnB, 1998.
_____________. Vocalidade e Cena: Tecnologias de Treinamento e Controle de Ensaio. Folhetim –Teatro do Pequeno Gesto No 44, Rio de Janeiro: Rioarte, 2002.
_____________. O lado épico da cena ou a ética da palavra. Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. Anais/IV Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. pp 308-9. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
Deleuze, Gilles e Félix Guattari. Mil Platôs - Capitalismo & Esquizofrenia. Volume 3 São Paulo: Editora 34, 1988.
Pavis, Patrice. Dicionário do Teatro: Dramaturgia, Estética, Semiologia. São Paulo: Perspectiva, 1996.
Stanislavski, Constantin. A Construção da Personagem. São Paulo: Civilização Brasileira, 1989.
_________________________. Manual do Ator. São Paulo: Martins Fontes, 1997.